AVESSOS DE NÓS
MARINA DE AGUIAR
ESPAÇO 2 | DE 21 DE JUNHO A 26 DE JULHO DE 2018
A desconstrução do olhar sobre o corpo feminino permeia a exposição, a partir de 10 bordados com a proposta de complexificar este corpo com suas subjetividades, dualidades e trajetórias contra toda a objetificação e fetichização que a representação da mulher enfrenta na história da arte. Nas obras a técnica do bordado é aplicada sobre gravuras de fotocópias de corpos femininos. Marina de Aguiar é natural de São Paulo e formada em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). A exposição foi selecionada pelo Edital 2018 na categoria Primeira Individual.
APRESENTAÇÃO
Exposição Avessos de nós, de Marina de Aguiar. Bordar é afrontar o tempo. Junto ao colo, o bastidor recebe o toque das mãos que percorrem pontos no ritmo do pensamento: é ritmo de carícia, quando se pode mostrar a beleza que a gente vê no espelho; mas é também ritmo de contragolpe, quando a agulha perfura as dores amigas para transformá-las em seus avessos, necessários, avessos nos quais a gente pode se ver com o amor que nos é próprio, e ponto final.
Marina de Aguiar borda os desafios da mulher que olha para a história da arte e não se vê, e não se vê nos padrões da propaganda dirigida a ela, mulher; borda também a coragem entretecida nos corpos de todas as que estamos refletidas em nossos próprios avessos: acorda o companheirismo das parceiras que se encontram com seus corpos pela primeira vez plenamente seus.
Os bastidores de Marina são conversa, têm lugar para o afeto, para a sensibilidade e a aposta na contundência de vozes inaugurais, nuas, vozes que vêm para dizer o que são, sem medo. E as mãos de Marina falam de um futuro bonito, no qual todas poderão se olhar nesse espelho dos seus próprios pontos entretecidos e bordar sua própria história, seu próprio tempo, sem as agruras da vigilância.
Nos veios das linhas que perpassam direitos e avessos, impera a esperança de que esse dia chegue logo: dia de nos abraçarmos com nossa própria nudez, sem a mácula do “mulher não pode”, do “fecha a perninha”, do “fica quietinha”, sem as violências, enfim, calcadas em termos de gênero, de raça, classe, cor, posição.
Marina convida então a nos desbordarmos para enfim tecermos juntas, juntos, juntes os nossos próprios ajustes, nossos próprios direitos, sim, tão necessários. A coragem vem de dentro do corpo de cada uma, de cada nó e pesponto que se aborda enquanto se borda, e se pensa quando se vê, se inaugura. O tempo do bordado é tempo, também, de transbordar, de cruzar os nossos avessos com a ternura nas mãos.
Telma Scherer
Exposição Avessos de nós, de Marina de Aguiar. Exposição Avessos de nós, de Marina de Aguiar.
A figura do corpo feminino sempre apareceu muito em meus trabalhos, e, cada vez mais, o bordado me pareceu oportuno para falar dele: bordar, bordar-se, abordar-se, e finalmente, transbordar. Isso porque todo meio que usamos, tem a sua própria fala, sua própria expressão; tanto na sua materialidade – suas texturas, cores, formatos – como também no seu processo histórico. Usá-lo para falar do corpo feminino é contar uma história sobre as mulheres, suas expressões, opressões, e também suas resistências. Pesquisar essa história é desvendar o outro lado das histórias hegemônicas da arte; é se deparar com estruturas e hierarquias construídas para desmerecer, diminuir e, sobretudo, invisibilizar tudo o que as mulheres construíram através dos anos; é se dar conta de que a versão da história que conhecemos hoje pode, de um lado, parecer uma linha comportada e reta, e de outro, pode ser um emaranhado de fios e pontos soltos. Para toda história, existe um avesso. Ele habita os silêncios, as pausas, os livros que nunca foram escritos. As narrativas dos lados de fora da biblioteca e nos espaços vazios entre as prateleiras. Foi a partir daí, no desenrolar dessas histórias, me aventurando pelos avessos, que percebi que fazia pouco sentido a idéia de um uso artístico de um meio artesanal; que não me bastaria buscar artistas contemporâneas que trabalhassem com técnicas têxteis, ou determinar o uso “artístico” dessas técnicas. Busquei ao invés disso questionar, afinal, o que essa fronteira entre artesanal e artístico realmente significa, e quais as construções por trás dessa divisória que naturalizamos.
“O bordado é linguagem, é expressão, é comunicação […]; é organização de pensamentos, de ideias, é a origem da escrita. É repetição e ritmo, é recursividade, produz sentindo.”
(Mariana Guimarães)
Por que pensamos que o fazer dito artesanal não está vinculado a um processo poético? Que é mera reprodução técnica e não se preocupa em articular pensamento e imagem; assumindo que não existe nada por trás dele? Isso está ligado à como julgamos as pessoas artesãs, supondo sempre que elas não estão produzindo nada importante. Mas isso não é verdade. Assim como outras técnicas, podemos nos permitir enxergar o bordado como um meio expressivo que possibilita um processo poético, onde se pode explorar a manualidade, e assim, também a própria subjetividade. Minha escolha, ao utilizar essa forma de falar do corpo feminino, vem do pensamento de quem bordou durante a história, que se sentou, calmamente, e produziu durante horas a fio. Nesse momento de bordar, nos colocamos presentes, o tempo se dilata e nos perdemos – ou nos achamos – nele. Enxergar esse processo como artístico e poético é, também, reconhecer as expressões criativas das mulheres, entender que o que sentimos e produzimos é válido, nossas inquietações são dignas de serem exploradas e estudadas. Precisamos reconhecer a nossa arte como parte essencial da nossa trajetória como mulheres na sociedade patriarcal.
Por mais que o bordado possa, sim, produzir resultados bastante grandes, e ainda possa ser muito explorado como técnica, a idéia da monumentalidade pode não ser o desejo das artistas e artesãs. Muitas vezes nos dedicamos por horas e o resultado são alguns centímetros. E tudo bem. Esse gesto pequeno, essa ferramenta que habita a ponta dos dedos, esse bastidor bem pertinho de nós; fazem parte de um processo íntimo, mas também delicadamente
intenso, que reflete em momentos de diálogo consigo mesma, proporcionando um processo poético diferente de muitas outras formas de arte. Não queremos distância e contemplação; queremos proximidade, tato e textura, e isso faz toda a diferença. A ideia de que o bordado só serve para produzir objetos decorativos e estampas florais foi ideologicamente produzida, a fim de invisibilizar as técnicas desenvolvidas por mulheres e seu papel na sociedade. Eu acredito que trazer a figura da raiz também desafia essa concepção. Primeiro porque a raiz, na maioria dos casos, não está à vista. Ela diz respeito a coisas que acontecem para além de onde os olhos alcançam, se lançando por um mundo desconhecido, um mundo avesso. Elas trazem a ideia de que há muito mais das coisas do que podemos ver, e que existe todo um fluxo silencioso essencial para existência das coisas. Exposição Avessos de nós, de Marina de Aguiar. Exposição Avessos de nós, de Marina de Aguiar. “Quando eu bordo um passarinho eu viro um passarinho, quando eu bordo uma árvore eu viro uma árvore, e aí depois eu bordo gente e viro gente, e bordo água e viro água.”
(Martha Dumont, Coletivo Matizes Dumont)
O corpo é o local onde acontecem as coisas. É nele que se dão os processos, materialmente, quando entra a linha, e interfere, imprime, refaz; e também num campo subjetivo, como um lugar avesso, invisível, onde esse tempo de bordar possibilita uma imersão em si, uma procura. A interferência do bordado sobre esse território faz parte de um processo de ressignificação, de retomada desse lugar de pertencer, onde a linha e a agulha entram delineando afetos, inscrevendo os processos que o corpo passa. Assim, penso que quando bordo sobre mulheres, viro mulher. De alguma forma, transbordo. Penso no bordar como o fator que entra no meu trabalho para desafiar o olhar, e ressignificar o corpo. Tanto o que borda, que tateia, que olha com atenção, que se propõe a mergulhar em uma imagem – como também o que é representado, que possui direito e avesso e raízes que se espalham por si mesmo. Quero representar mulheres que se aventuram por si, resistindo, retomando poder sobre esse local, e se maravilhando com a quantidade de vida que existe nesse avesso de si.
Marina de Aguiar