COLEÇÃO CATARINA: COLETAR E CUIDAR
CURADORIA DE YLMAR CORRÊA NETO
ESPAÇO FERNANDO BECK E ESPAÇO PAULO GAIAD | 30 DE NOVEMBRO DE 2019 A 27 DE FEVEREIRO DE 2020
Para além do propósito que move os colecionadores, a formação de uma coleção sempre constitui um patrimônio singular para a área que foi contemplada. Nas artes visuais, recortes diversos permitem compreender sentidos e trajetórias. Quando o colecionador particular tem a generosidade de permitir o acesso a pesquisadores e ao público, isto cria uma potência e uma oportunidade extraordinária para o registro e a divulgação de um conhecimento que sai da esfera privada e ganha ares universais. Quando coincide, ainda, de a coleção ter sido constituída pelo olhar de um pesquisador atento, interessado tanto na história quanto na poética e qualificado para estabelecer relações entre as obras, a Cidade ganha uma grande aula.
APRESENTAÇÃO
Coletar e cuidar ou colecionar e curar é o mote da coleção catarina [c²], um conjunto de obras relacionadas à Santa Catarina que vem sendo construído por cerca de 40 anos. Artistas nativos, adotivos, viajantes, expatriados [desterrados] ou outros menos definidos são bem vindos. Não pretende ser enciclopédica, omitindo artistas significativos ora por opção, ora por falta de oportunidade, mas objetiva estudar com mais profundidade alguns percursos e afinidades, eventualmente divergindo da canonização tradicional.
A coleta envolve pesquisa, procura, disponibilidade, oportunidade e escolha, identificando ou criando relações entre as obras e os artistas, estabelecendo os limites e características da coleção, um quebra-cabeças potencialmente infinito.
Exceto os núcleos de iconografia e de Martinho de Haro, a maioria das obras da c² foram obtidas diretamente dos artistas, outras nos mercados primários e secundários, raras em leilões ou herdadas. Algumas são presentes dos artistas, cuja generosidade no convívio e nas conversas facilitam a decodificação e a compreensão de seus percursos. Infelizmente dois artistas acompanhados, Eli e Gaiad, tiveram suas obras concluídas, encerrando diálogos aprazíveis.
Cuidar não envolve apenas preservar, mas estudar e facilitar a divulgação dos artistas e suas produções. Obras da c² já participaram de cerca de uma dúzia de exposições e de mais de uma dúzia de publicações. Núcleos selecionados já serviram de inspiração e base para livros e mostras.
Conjuntos significativos de M. de Haro, E. Heil, C. Asp, P. Gaiad, F. Lindote e D. de los Campos foram coletados. Conjuntos menores, mas representativos, de L. Choris, R. de Haro, E. Hering, L.H. Schwanke, W. Corrêa, G. Machado e J. Amaral foram recolhidos. Obras de J. Kreplin, J. Bruggemann, V. Meirelles de Lima, P. Weingartner, J. D’Ávila, W. Wendhausen, R. Oestroem e Y. Peled completam o recorte exibido.
Em 2019 comemoramos os 100 anos de nascimento de Meyer Filho [artista infelizmente sub-representado na coleção], os noventa de Eli Heil, e os aniversários de 80 anos de Rodrigo de Haro e setenta de Carlos Asp. Esta pequena lista de efemérides demonstra a potência e a pluralidade da arte
catarinense. Estimular estratégias de colecionismo da arte próxima no espaço e no tempo é a intenção maior desta exposição.
Ylmar Corrêa Neto | Curador
Vasos de cérebros, Eli Heil, 1987. Técnica mista sobre tela, 140×110,5cm.
Louis Choris | Heinrich Kreplin | Joseph Bruggemann | Victor Meirelles de Lima | Pedro Weingartner
Negres dessinée au Brésil – Koepfe von Neger aus Brasilien, Louis Choris, 1815. Aquarela sobre papel, 38,5x31cm Louis Choris
Denipropetrovsk, Ucrânia, 1795 | Veracruz, México, 1828 N.S. do Desterro – Insel Sta. Catharina, Heinrich Kreplin, circa 1861. Lápis e aguada sobre papel, 69,5x48cm. Heinrich Kreplin
Anklan, Pomerânia, 1834 | 1909 Cidade do Desterro, Joseph Bruggemann, circa 1865. Litogravura, 64,3×49,7cm
Joseph Bruggemann
Strasund, Alemanha, circa 1825 | Alemanha, circa 1894
Nêsperas, Victor Meirelles de Lima, sdata. Óleo sobre tela, 42,5x34cm. Victor Meirelles de Lima
Desterro [Florianópolis], 1832 | Rio de Janeiro, 1903 [Desterro], Pedro Weingartner, 1893. Óleo sobre madeira, 53,3x40cm.
Pedro Weingartner
Porto Alegre, 1863 | 1929
Rodrigo de Haro
Paris, 1939
Vive e trabalha no Morro do Assopro, Lagoa da Conceição
“Na tela vertical, arbitrariamente dividida, a igreja preciosa, emoldurada pela encosta prepotente, aberta como leque, espera o abraço da onda.
O tronco desgalhado da árvore tombada foge como um lagarto ameaçado. Ei-lo que avança contra o folgazão mascarado de urubu – Talvez um peregrino de Naufragados – O jardim é um cofre de trilhas, cofre trazido de Goa, labirinto de trilhas onde avança o sal marinho.”
Rodrigo de Haro
Ilha ao Luar | Florianópolis | Fenasoft | 1997 Igreja da Lapa do Ribeirão, Rodrigo de Haro, 1997. Acrílico sobre tela, 110,5x162cm. Judite, Rodrigo de Haro, 1973. Óleo sobre compensado, 98x164cm.
Martinho de Haro
São Joaquim, 1907 | Florianópolis, 1985
“Martinho de Haro, a partir dos anos 1940, modificou definitivamente a forma de olhar Florianópolis, de maneira que representação e realidade se confundem numa atmosfera de lirismo e nostalgia, diferente do que fizeram os primeiros artistas a retratarem a Ilha, a partir do século XVIII. … Ao contrario destes, Martinho inovou na escolha dos sítios, nos ângulos inusitados, nas tonalidades, representando o casario, o mar e o céu com ocasos vibrantes. No inicio trabalhou diretamente do motivo, as vezes utilizando gravuras ou fotografias antigas, e depois passou a reutilizar seus desenhos, criando e recriando a cidade com alguma liberdade e muita poesia.”
Y. Corrêa Neto
Corrêa Neto e Prade | A Florianópolis de Martinho de Haro |
Florianópolis | Tempo Editorial | 2007
Carlos Asp
Vive e trabalha em São José e Porto Alegre
Campos relacionais e outros, Carlos Asp, 1992-2019. Desenhos sobre embalagens, desenho sobre papel, desenho sobre tela, gravura em metal, litogravura. Dimensões variadas.
“…desenha séries de círculos preocupado com o ritmo imposto ao lápis no preenchimento e na interação entre as diversas manchas, negras ou coloridas, a quais chama de campos relacionais.
Embora de formação acadêmica, Asp se considera um marginal, tendo também estudado música e astrologia, morado em uma comunidade alternativa e vivenciado intensamente a religião nos anos 80. Como escreveu Fernando Lindote: “Asp talvez não exista. Talvez seja uma sigla”.”
Y. Corrêa Neto
Revista Cremesc | 114:19 | 2010
Rubens Oestroen | Yiftah Peled | José Silveira D’Ávila
Impressão Americana, Rubens Oestroen, 1984. Acrílico sobre tela, 145x194cm. Qual é o seu desejo, Yiftah Peled, 2013. Fotografia recortada, 53,5×41,5cm. [Estudo], José Silveira D’Ávila, c. 1963. Aquarela e grafite sobre lâmina melamínica, 36,3x44cm. Rubens Oestroem
Blumenau, 1953
Vive e trabalha em Sambaqui Yiftah Peled
Afula, Israel, 1964
Vive e trabalha em Vitória, ES José Silveira D’Ávila
Florianópolis, 1924 | Rio de Janeiro, 1985
Walter Wendhausen
Florianópolis, 1920 | Rio de Janeiro, 1973
“Se, para Gagarin, a terra é azul, para Walter Wendhausen, a lua tem cores variáveis, de acordo com a emoção do momento da criação: cinza, vermelha, azul ou amarela. Nestas paisagens (quem as conhece em detalhes?) cabe uma moldura antiga, uma calota de automóvel, placas de ferro velho, uma banal tampa de garrafa, que poderá sugerir um vulcão.”
Harry Laus, Jornal do Brasil
Apud panfleto da exposição no MAMF [atual MASC] | 1968 Paisagem lunar, Walter Wendhausen, 1968. Tinta, objetos e areia sobre madeira, 59,5×65,6cm.
Elke Hering
Blumenau 1940 | 1994
Julia Amaral
São Paulo, 1978
Vive e trabalha no Campeche
“A artista coletou animais mortos e os utilizou na produção do molde para fundição em prata ou bronze. No processo o corpo dos animais se tornou cinza, como que cremado, e sua forma em decomposição se perpetuou em metal, como que fotografada em três dimensões. Além de visualmente interessantes, estas obras evocam sutilmente conceitos relativos à vida e à morte, ao transitório e ao perene.”
Y. Corrêa Neto
Revista Cremesc | 110:19 | 2010
Walmor Corrêa
Florianópolis, 1961
Vive e trabalha em São Paulo
“Walmor Corrêa vem desenvolvendo desde o final da década de noventa uma obra conceitualmente única, mistura de imaginação e ciência, Utilizando a pintura, o desenho, esqueletos, galhos de arvore, taxidermia, vitrines e a palavra, modifica, mescla e nomeia espécimes, criando com ironia e humor uma fauna e flora particular, dissimulada. Suas obras, que a primeira vista parecem proceder de um sisudo Museu de Historia Natural, examinadas em detalhe revelam sutilezas como um coração com três câmaras em uma sereia, um esqueleto de pássaro com bico na forma de trompa, ou aves empalhadas com cabeça de rato, abordando preocupações bioéticas como morte, manipulação genética e xenotransplantes. … Tudo com muito apuro técnico.”
Y. Corrêa Neto
Revista do Cremesc | 109:19 | 2009
Diego de los Campos
Montevideo, Uruguai, 1971
Vive e trabalha em Florianópolis Dialética binária, Diego de los Campos, 2017. Escultura cinética em papelão, madeira, cola quente, palito de madeira, impressão 3D, servo motors, arduíno, 35x41x13cm.
Fernando Lindote
Santana do Livramento, RS, 1963
Vive e trabalha no Campeche
“Desde 2009 tem se dedicado mais a pintura a óleo. O contato direto com a arte antiga europeia a partir das primeiras viagens de estudo em 2014, especialmente com Rembrandt, Goya, Rubens e Delacroix, solidificou seu compromisso com a pintura e o desenvolvimento de uma estratégia única na abordagem das telas. Variações de como pinta, o que pinta e porque pinta criam camadas de complexidade permitindo diversas e ricas leituras de seus quadros.
Por que pinta é mais difícil de opinar. Não é pintor acadêmico mas pinta histórias, estórias e retratos. Não é pintor moderno mas descontrói objetos que passam a constituir motivos para reelaboração. Não é pintor abstrato mas pinta ritmos e devaneios. É vários e nenhum. Lindote cria quebra-cabeças intelectuais, enigmas pictóricos contemporâneos, onde nem tudo é explicito e nem tudo é o que parece ser.”
Y. Corrêa Neto
Revista Hepato Brasil | 6(2):25-27 | 2019
Luiz Henrique Schwanke
Joinville, 1951 | 1992
“Pensemos no caso da premiada serie São Sebastião, de Antonello de Messina, desde seu ponto de partida na escolha da obra original … Sem dúvida obra importante, mas com valor oculto, por permanecer no imaginário homoerótico pelo seu caráter andrógino. … Finalmente, as flechas que na obra original já eram uma releitura temporal renascentista, por se tratar de setas de besta e não flechas romanas, são relidas como pimentas malagueta (Capsicum frutescens), cujo formato tem conotação fálica, além do estimulo visual provocado pela cor vermelha saturada conotando paixão, agressividade, excitação; biologicamente, a capsicina [sic], dilatando os capilares, aumenta níveis de endorfina e sensação de prazer, aflorando sensualidade e resposta sexual. Neste desenho Schwanke forma o retângulo central contendo a flecha/pimenta de modo totalmente diverso de todas as outras reservas: o lado esquerdo é irregular, induzindo o movimento de leitura e da “flecha” disparada.”
Walter de Queiroz Guerreiro
Schwanke: Rastros | Belo Horizonte | C/Arte | 2011.
Eli Heil
Palhoça, 1927 | Florianópolis, 2017
“Em EH a opção é pela expressão da dor, da feiura, com colorido intenso, composição vertiginosa, e “horror vacui”, sem desdenhar do improviso, do aleatório e do acidental. O efeito é perturbador, puro, direto e, consequentemente, universal.
Inicialmente blindada de interferências externas pela crítica especializada, sua produção foi amadurecendo pela autoconfiança, pelo auto-aperfeiçoamento técnico e pelo arrojo no uso de diversos materiais.
O inevitável contato com instituições tradicionais da arte nestes mais de cinquenta anos de atividade ininterrupta não afetou sua originalidade e autonomia. Pelo contrário, as margens da arte moderna e contemporânea se alargaram e passaram a incluir sua produção. Às custas de sacrifícios pessoais, EH não sucumbiu às pressões do mercado das artes pela serialização, usualmente o suicídio artístico dos “outsiders”.”
Y. Corrêa Neto
Eli Heil 85 anos | Florianópolis | FCC | 2014
Gabriela Machado
Joinville, 1960
Vive e trabalho no Rio de Janeiro Sem título, Gabriela Machado, 2014. Porcelana policromada, dimensões variadas. Sem título, Gabriela Machado, 2014. Porcelana policromada, dimensões variadas.
Paulo Gaiad
Piracicaba, SP, 1956 | Florianópolis, 2016
Cicatriz, Paulo Gaiad, 1998. Marcas de arame oxidado sobre papel, 170x100cm. Sem título, Carlos Asp, 14.10.2016. Desenho sobre papel, 38x30cm. Sem título, Carlos Asp, 15.10.2016. Desenho sobre papel, 38x30cm.
Na tarde do dia 14 de outubro de 2016 Paulo Gaiad faleceu no Hospital Baia Sul em Florianópolis. Carlos Asp se encontrava no mesmo complexo e tomou conhecimento do ocorrido. Enlutado, Asp produziu estes dois desenhos em homenagem ao artista morto.
“O uso de fotografias, próprias ou de outrem, é outro elemento frequente na obra de Paulo. “O atestado da loucura necessária II” (2005), selecionado para o Salão Victor Meirelles, é um exemplo de como Paulo consegue transmutar o significado das imagens. Uma pequena fotografia ampliada para 140 por 140 cm de uma criança de colo, com toca, bico caído e sorriso tem seu significado pervertido por uma tênue inscrição na borda esquerda do quadro, qual palimpsesto: “De fato nem todas as demências são funestas. Sem isso Horácio não teria dito: Não estou exposto a amável loucura?”. A citação do Elogio da loucura de Erasmo de Roterdã é descontextualizada e a combinação imagem-palavra gera novo sentido, modificando a percepção da alegria, antes inocente, agora irônica, daquele pequeno burguês uruguaio. Adquirido por Paulo em um mercado de pulgas em Curitiba, um álbum de fotografias do inicio do século XX de uma família uruguaia servirá para várias obras, memórias de outrem.”
Y. Corrêa Neto
Revista Digital Punctum | Florianópolis | UFSC | 2014
“Foi em 2002 no Museu de Arte de Santa Catarina, na exposição “A poética da morte na cultura brasileira” curada por João Evangelista de Andrade Filho, que encontrei “Estudo preparatório para a divina comédia” (2001), ou a Sara, como a chamamos em casa com a anuência do Paulo.
Sara motivou a primeira visita ao atelier da rua Eugênio Raulino da Silva. Pedi ao editor Cleber Teixeira da Noa-Noa, amigo do Paulo, que lá me levasse. Em uma manhã de sábado, Cleber com sua calma e simpatia, eu, e um mapa improvisado partimos em uma expedição ao Campeche, no sul da Ilha de Santa Catarina. Achamos o atelier, próximo a uma igreja em construção dedicada a São Sebastião e a Nossa Senhora do Sagrado Coração, após passar por uma torre de telefonia móvel que não existe mais. Paulo, calmo e simpático, me mostrou suas obras em pequena retrospectiva, explicando detalhadamente suas técnicas e inquietações.
Sara estava encaixotada, em ataúde próprio, não devido à exposição no MASC que não tinha estes requintes, mas a mostra “Divina comédia” no Museu Metropolitano de Arte de Curitiba (2002). A abertura foi difícil, os parafusos estavam apertados, mas assim que exumada decidi por tentar incluí-la em um conjunto que venho cuidando nos últimos trinta e cinco anos, focalizado na arte catarina.
Faltava convencer … o Paulo, que gostava especialmente da Sara: uma foto anônima dos Arquivos Judiciários Franceses (“sic”) de uma colaboracionista desconhecida, qual “nuda veritas”, vestida apenas de sandálias, meias, pérolas e a corda que a enforcara, acrescida de fios metálicos, alguma ferrugem e uma caixa de ferro e vidro onde se consegue notar a mão do artista, apesar da força da imagem, dor de outrem. Paulo, embora imaginasse um lugar melhor para Sara, aceitou a separação e amizade e coleção começaram juntos, com visitas frequentes ao atelier possibilitando acompanhar seus diversos projetos.
É irônico chamar de Sara uma prostituta nazista, assim como é desconfortável a sensação de que a informação sobre a origem da imagem modifica/atenua a violência. Tanto na caixa quanto no titulo Paulo omite a informação, isolando a imagem e a reconstruindo em perspectivas diversas.”
Y. Corrêa Neto
Revista Digital Punctum | Florianópolis | UFSC | 2014
“Sobre a estadia em um vilarejo na montanha Wilhelmsfeld e a obra de Heidelberg, Paulo escreveu: “Do alto do “caminho do filósofo” vejo o Neckar e toda a cidade. Atravesso a ponte velha e caminho pelas ruinas do castelo, deito e tomo café da manhã na grama dos parques vendo barcos e cisnes passarem. Fui enfeitiçado por esse lugar onde vivi intensamente e me transformei profundamente, sem possibilidade de volta. Algumas coisa se quebraram dentro de mim, outras se juntaram, ainda não sei o que resultou, sei que aqui eu mudei”.”
Y. Corrêa Neto
Revista Digital Punctum | Florianópolis | UFSC | 2014
“A primeira “Cicatriz” (1998) que entrou na coleção foi um pequeno pacote embrulhado com chumbo maleável contendo um paralelepípedo de papel filtro colado, marcado pela ferrugem de fios metálicos que antes o amarravam. Ali Paulo inscreveu um pequeno texto que ilumina, ou escurece, o sentido da série: “Ao se fechar a ferida a cicatriz guarda essa marca, a essência da dor. Traz em si a história da difícil caminhada que é viver. Essas marcas e feridas nos tornam mais duros, menos flexíveis, mas nos permitem continuar a andar. Ainda bem que se fecharam, senão a loucura seria certa”.”
Y. Corrêa Neto
Revista Digital Punctum | Florianópolis | UFSC | 2014
“O jogo imagem-palavra continua em “Música ao entardecer” (2008), da série “Luz e sombra”, produzido junto com duas outras obras de dimensões semelhantes para uma exposição em Curitiba que acabou não ocorrendo. A luz e a música são representados pela colagem da embalagem de lâmpadas “National Mazda” e pelo miolo de um disco francês de 78 rotações contendo a canção “Eccoutez moi”. A música permite à obra uma quarta dimensão.
A série “Fragmentos de um noturno” (2008) é outra obra musical, baseada na composição para piano de Alberto Heller. Na peça presente na coleção a combinação partitura de Heller-imagem, utiliza a ampliação da embalagem de lâmpadas “National Mazda”, montada em pesada chapa de ferro. Aqui as conexões internas na obra do Paulo abundam em coda.”
Y. Corrêa Neto
Revista Digital Punctum | Florianópolis | UFSC | 2014
“Guto Lacaz não enviou apenas o chapéu de seu pai, o Prof. Lacaz, mas também o cartão fúnebre da sua recente perda e uma carta em envelope azul piscina onde escreveu: “Querido Paulo, obrigado pelo convite, aqui vai um dos chapéus (o mais bonito) que meu pai usava. … Sucesso”. Carlos da Silva Lacaz (1915-2002), pai do Guto, foi médico, professor catedrático de microbiologia e imunologia da Universidade de São Paulo, fundador do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo e autor de cerca de 500 trabalhos científicos, 50 livros e 1500 artigos de divulgação para a Folha, também de São Paulo. Paulo também enclausurou o chapéu, dentro de sua caixa de cartão, em ferro e vidro.
Com o chapéu do Carlos-Guto-Paulo, parafraseando Schopenhauer, “torna-se claro e certo que não se conhece chapéu, sol e terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um chapéu, um sol, uma mão que toca uma terra”. Quem conhece o Prof. Lacaz vê o chapéu do professor e cientista, quem conhece o artista Lacaz aprecia o design e a função/disfunção do chapéu, quem ambos conhece vê a simbiose. Quem desconhece o pai, o filho e o espirito do Paulo vê ferro, vidro, cartão e feltro. “Isto é um chapéu” e a obra continua funcionando muito bem.”
Y. Corrêa Neto
Revista Digital Punctum | Florianópolis | UFSC | 2014 Receptáculo da memória de Guto Lacaz, Paulo Gaiad, 2002. Chapéu, caixa de papelão e vidro em caixa de ferro, 35x35x17cm.