DOMESTICAR
ADRIANE HERNANDEZ
CURADORIA DE LETÍCIA CARDOSO
ESPAÇO FERNANDO BECK | 22 DE AGOSTO A 10 DE OUTUBRO
O jogador de xadrez, para o filósofo Johan Huizinga, precisa do tabuleiro, assim como a mesa é necessária para acontecer o jogo de cartas ou uma festa. O templo, o palco, o campo de tênis, o tribunal são todos terrenos de jogo. Estes terrenos são lugares, em cujo interior se respeitam determinadas regras delimitadas pelo tempo e espaço. Aproximo o conceito de território do jogo, utilizado por Huizinga, com o que denomino, de xadrez azul neste texto, para ler o Domesticar proposto pela artista Adriane Hernandez. A mesa do jogo, neste caso, seria a toalha da mesa xadrez azul e as regras seriam determinadas pelo manejo da poética da artista em cores em festa disposta no tempo e espaço desta exposição. Neste festejo, a artista, que mirava o miolo do pão no início da tese, e o elegia como verdadeiro objeto de foco, ao aproximar e se distanciar com o auxílio de uma câmera fotográfica analógica, desfoca o olhar no xadrez azul da toalha de mesa e festeja a cor no deslocamento entre os suportes. Uma festa domesticar?
O verbo domesticar faz alusão ao cotidiano doméstico. A repetição do trabalho doméstico para Adriane, como o gesto simples de estender uma toalha na mesa xadrez azul, produz atividades cotidianas, inventivas e integradoras, que frutificam no imaginário fazendo eco nas memórias das infâncias. A cor festeja, camufla a repetição: bagunça de uma festa de aniversário. O psicanalisa Edson Luiz de Souza comenta que nos queixamos, mas amamos o automatismo da repetição, já que o amanhã nos pressiona a duas respostas, entre o medo e a esperança. No ato de diferenciação durante a repetição, sonharíamos novamente. A artista frutifica as memórias de infância ao relembrar o xadrez azul e diferenciar ao pintar flores coloridas, ao transbordar no vidro que protege o papel, ao cobrir bancos de cozinha… ou no deslocamento de sentido de um título que remete a festa de aniversário. A toalha de xadrez azul é o aniversariante da festa doméstica?
A invisibilidade da tarefa doméstica feminina remete a narrativa das mulheres que perderam tempo nos afazeres na casa, mas será que se rebelaram contra a chatice do patriarcado pela camuflagem criativa nos arranjos de mesa? A artista pesquisadora denuncia a invisibilidade, mas também valoriza o gesto feminino de nutrir uma mesa ou arrumar uma cama, prazer da mão da prática pictórica? A cineasta Chantal Akerman, faz política ao prolongar o tempo de cenas dos afazeres domésticos e comenta acho mais fascinante ver uma mulher – que pode ser todas as mulheres – arrumando sua cama durante três minutos que uma corrida de carros que dura vinte minutos. Adriane, na sua tese de doutorado, elege o verbo prolongar como conceito operacional de seu trabalho; pois este recurso da prática seria um dispositivo de pensar nas mesmas coisas sobre outro ângulo. Dispositivo que demanda tempo, como a maturidade da pesquisa da artista/professora/ pesquisadora. Adriane escreve trazer a toalha de mesa para um contexto expositivo é também abordar a casa, e o gosto popular, fora dela, atribuindo uma função política e feminista ao domesticar. Política feminista e do tempo, já que o tempo do jogo é do prazer inútil contra a lógica capitalista. Alegria em estender uma toalha na mesa, montar uma festa ou um café, pensar ou pintar.
O que denomino como xadrez azul pode ser um tabuleiro de jogo, apropriado pela artista do horizonte doméstico, para montar e desmontar sua poética no tempo prolongado. A artista, desde 2010, utiliza sistematicamente essa padronagem como elemento de jogo de linguagem. David Batchelor comenta que em latim, colorem está associado com celare, esconder, ocultar; em inglês medieval, to colour quer dizer adornar ou embelezar, disfarçar, tornar ilusório ou plausível, desvirtuar. Adriane monta e desmonta o xadrez azul e desvirtua as regras domésticas no território da arte, não perde o jogo e nem o tempo.
Letícia Cardoso
